Quem pode falar como negra?

Ariane Silva
5 min readSep 23, 2021

O Brasil não é os Estados Unidos. Ainda bem.

Ontem publiquei uma história no 4W, um site pequenininho financiado por mulheres, fundado pela Mary Kate Fain após ter perdido o emprego como engenheira pelo crime de ser uma mulher expressando opinião online.

A história era sobre a Aleta Valente (@ex_miss_febem_) artista que está sendo atacada pelo crime de ser uma mulher expressando sua opinião online — vai sair em português na QG Feminista logo mais, acompanhem lá.

E eu, Ariane Silva, sou jornalista, mais uma mulher expressando sua opinião online.

Link pra matéria: https://4w.pub/brazilian-feminist-artist-threatened/

A Mary Kate é branca e mora nos Estados Unidos. A Aleta e eu, não. Se a gente morasse onde a Mary Kate mora, provavelmente se refeririam a nós duas como ‘mixed-race’, ou multirracial, que significa pessoas com famílias de diferentes raças/etnias. Esse conceito faz sentido lá nos EUA, considerando como a escravidão se desenvolveu, o histórico de segregação racial, e especificidades sócio-históricas da formação do povo estadunidense. Mas o povo brasileiro foi formado a partir do tráfico de pessoas negras escravizadas, do genocídio indígena e do estupro em massa contra mulheres, que produziram um contexto em que qualquer noção de pureza étnica simplesmente não se aplica.

A gente brincava lá em 2013 que neonazista brasileiro que quer fazer limpeza étnica tem que começar pelo suicídio.

Eu lembro da minha mãe, que não se entendia como negra, comentando lá em 2007 sobre estudo de DNA com o Neguinho da Beija-Flor e a Ivete Sangalo. Na época eu ainda assistia TV, deve ter passado no Fantástico. A noção de que alguém como a Daiane dos Santos teria só 39,7% de ancestralidade africana fez muita gente coçar a cabeça. Minha mãe é da cor da Daiane dos Santos. O que é ser negra no Brasil?

Daiane dos Santos cita racismo na seleção: ‘Não usavam o mesmo banheiro que eu’. Foto: TV Globo

Antes de ter que decidir como eu me identificava pra marcar a caixinha da inscrição no vestibular, eu nunca tinha pensado nisso. “Preto”, na minha família, era punchline de piada. Meu tio Gaspar ria contando do negão que foi tentar copiar o carro chique do branco, perguntou qual era (Tempra preto), encomendou um igual e recebeu um carro todo escafulefado, velho, acabado. Ele não entendeu e o vendedor explicou: era um Trem Pra Preto. Meu tio Gaspar não era preto. Minha mãe também ria, porque também não era preta.

O Trem Pra Preto do meu avô era igual esse aqui. Foto: Carros Inúteis.

Minha avó Teresa, mãe da minha mãe, era uma mulher pequenininha de cabelo fino, que escondia os cachinhos no coque apertadíssimo e nos grampos que apertavam a cabeça. Ela também não era preta. Eu cresci com histórias da minha bisavó, Jacira, que morreu enlaçada no cocho enquanto dormia. Minha bisavó era indía. Ela também não era preta. Meu avô, magrinho de cabelo branco cacheado, gastou a vida com uma enxada na mão. Ele era mais escuro que a Daiane dos Santos e também não era preto. Mas ele não era branco. Ele não era nada.

Preto, na minha família, era sempre o outro. O vizinho que a gente não gostava, o grosseirão sem camisa no bar que fazia a gente ter que atravessar a rua pra não passar na frente. Era o povo da vila lá detrás do bairro (duas ruas acima de onde eu cresci). Era o pessoal da escola pública.

“Preto” era a identidade com que a gente fazia piada, “negro” era a que a gente escondia.

Foi um amigo branco que desfez na minha cabeça esse emaranhado quando eu fui decidir se ia concorrer nas cotas pra negro no vestibular. Eu expliquei que estudei em escola particular (escola barata, ruim, de cidade pequena do interior de SP, mas escola particular). Expliquei que tive oportunidade de fazer cursinho quando não passei no vestibular de primeira. Falei que tinha gente que precisava mais, que eu não achava justo. Ele só perguntou: ok, mas você sofre racismo? Não respondi, mas me inscrevi no vestibular na reserva de vagas pra pessoas negras.

Hoje a gente precisa começar se autorizando pra falar de assuntos que deveriam ser autoevidentes. Tem que declarar o local de fala, porque sabe que tem gente com uma lupa na mão examinando cada pedacinho do nosso corpo e das nossas ideias.

Eu escrevi no texto que a Aleta é uma black woman, uma mulher negra. É o meu texto, minha reportagem. Quem escolheu o termo fui eu. E ela está sendo atacada por isso. Eu escolhi esse termo não porque ela me contou que se identifica como negra, mas porque eu, enquanto jornalista, sei ler que quando uma pessoa reconta a história de vida e relata ser filha de uma mulher negra com um homem nordestino, essa pessoa é negra. E eu enquanto negra de uma família negra toda misturada e que não sabe falar de si, assim como a maioria das famílias brasileiras, sei reconhecer alguém que ocupa esse mesmo lugar: negra o suficiente pra sofrer racismo, mas não o suficiente pra poder falar que sofre racismo.

Foi o movimento negro no Brasil que lutou pra que esse reconhecimento racial fosse feito. As categorias ‘preto’ e ‘pardo’ no Brasil são usadas pra identificar, juntas, o tamanho da população que é negra, e planejar políticas públicas a partir disso. Não é que o IBGE decide quem é negro (até porque essas categorias são registradas a partir de autoidentificação), é que a gente lutou pra conseguir dar sentido pra essa história complexa da formação do povo brasileiro e a melhor síntese que saiu foi essa. Minha mãe é mais escura que eu, mas diz que é parda. Eu preencho a caixinha de negra, depois de muito tempo vendo que eu era tratada diferente, tratada mal, sem saber nomear o motivo. Eu sou feminista, militante. A minha mãe não é.

Eu poderia seguir falando como há alguns anos não tem sido mais o tom da pele o que valida nas nossas comunidades quem pode ou não falar enquanto negra, mas sim a concordância com determinados dogmas. Eu sou negra do jeito errado — sou ateia, por exemplo. Sou embranquecida, de acordo com alguns, então branca. Já não é mais sobre minha ancestralidade, tom da pele, cabelo ou feições faciais. Mas isso, acredito, é autoevidente. Basta prestar atenção — ter coragem pra prestar atenção.

A Aleta disse que é filha de mulher negra com um homem nordestino. Pra deixar claro, ela não sente que pode falar enquanto negra. Não quer dizer que ela não o seja. Mas quem disse que a Aleta é negra fui eu. Enquanto repórter, defendo meu texto e não considero ter cometido nenhum erro. Minhas credenciais estão aí em cima, caso queiram checar. Eu posso falar enquanto negra. Quem não concorda que me convença do contrário.

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