Xuxa e os doentes

Ariane Silva
4 min readMar 29, 2021

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Não vi a retratação, pouco me interessa. A polêmica da vez escandaliza por que tem implicações racistas, embora dê pra argumentar que a intenção não tenha sido. Vejam bem, isso não é uma defesa: pra quem não sabe do que eu tô falando, a Xuxa, que há um tempo segue uma dieta vegetariana estrita (veganismo não é dieta!) deu uma declaração dizendo que vacinas e medicamentos deveriam ser testados não em animais, mas em pessoas encarceradas. Como sabemos, a população carcerária no Brasil é de maioria negra. Assim como a classe trabalhadora é negra. E a cara da fome, da miséria, da prostituição, do trabalho análogo à escravidão também é negra. Duvido muito que a própria Xuxa tenha essa consciência — caso tivesse, não teria dado uma declaração dessas.

Pessoalmente, o que me escandaliza nessa situação não é o racismo implícito. Ela não propôs e nunca proporia que a gente experimentasse com a saúde das pessoas negras especificamente — como já aconteceu em vários momentos da história, com esterilização em massa de mulheres negras, experimentos eugênicos, e como continua ocorrendo em hospitais por aí que insistem em testar a tese de se negros têm alma ou são humanos ao negar tratamento para dor de quem precisa e tem a cor errada na escala do tom de pele.

O que eu acho difícil de engolir é essa noção de que é possível e desejável trocar uma humanidade por outra. Que a pessoa encarcerada, seja negra ou não, seja transformada em coisa. Em corpo amontoado para gerar lucro como nas prisões privadas estadunidenses. Em amontoados de células e órgãos que possam ser usados em testes forçados, por que não se enxerga ali um sujeito. É a humanidade do preso pela humanidade do doente, ou do que pode vir adoecer. Não é muito diferente da lógica que defende a pena de morte ou que faz escala de opressões. Dois extremos ideológicos, o ultraconservadorismo e a lacração, que têm muito em comum. Explico:

Pregar a morte física, como fazem os conservadores, é um absurdo aos progressistas. Mas a morte social do sujeito, declarado inválido por um crime de fato ou de pensamento, é algo com que a gente tem ficado muito confortável. O Outro deixou de ser a burguesia e passou a ser aquela colega que custa se manter na classe média pulando entre um trabalho e outro, mas numa posição de relativo conforto, não passando dificuldades imediatas. Deixou de ser a branquitude e passou a ser aquela negra de pele clara que tem uma opinião que desagrada, mas que ninguém julgou pelo mérito, e sim pelo não pertencimento ao grupo dos “negros de verdade”. Deixou de ser o patriarcado e a heterossexualidade compulsória e passou a ser a lésbica que ainda se entende como homossexual e não como integrante de uma sopa de letrinhas impronunciável com identidades que ninguém mais compreende.

Na hora do conflito, primeiro a gente mede a validade do sujeito na escala da opressão, nossa escala de humanidade à esquerda. Os fatos não importam. Assim é definido o status de ser humano das partes envolvidas. Na ausência de um inimigo legítimo, vale qualquer proxy: o homem negro de esquerda que afirma que a homossexualidade é euro centrada e portanto ruim não é mais homofóbico. Homossexual = branco, portanto inimigo. Não é que parte do movimento negro é antifeminista, é que é “feminismo branco”. A mulher bissexual branca que acusa de agressiva uma lésbica negra num espaço LGBT que não fez mais que ocupar espaço, calada, não é mais racista. Lésbica = “monossexual”, portanto inimiga. Não é que parte do movimento LGBT é misógino e não reconhece a opressão das sexualidades como relacionada à dominação da mulher. É que é privilégio “monossexual”. Troca-se uma humanidade por outra, numa operação matemática que satisfaz nossa sede de representatividade e constrói um mundo lógico, positivo, progressista, em que conflitos são simples de se compreender e as soluções são fáceis de formular e aplicar.

Tenho visto por aí gente que se afirma feminista e quer as mulheres brancas caladas no movimento. As lésbicas escorraçadas do LGBT a menos que seja pra apoiar ideias que são, em essência, anti-lésbicas. Vejo muitos homens também que querem as mulheres para representatividade e mais nada: negras, indígenas, lésbicas, caladas compondo um arco-íris identitário que em relação a diversidade de ideias não chega a duas cores, menos ainda 7.

Reclamar da Xuxa satisfaz. É uma crítica fácil a se fazer. Nem ligo pra esse cancelamento específico, não é sobre isso. Mas é que o discurso escandaloso e de explícita incitação a violações de direitos humanos é fácil de enxergar como desumanizador — ainda que boa parte das críticas que eu tenho visto não tenham ido por aí, se limitando a falar das implicações raciais. Mas a desumanização habita a práxis de esquerda e virou corriqueira.

Estamos todas exaustas, machucadas, e isoladas, e quem tem se destacado, se tornado relevante e influencer é quem sabe fazer essa operação matemática, de desumanizar de acordo com a escala de humanidade específica da ideologia a que subscreve, e se construir sobre os destroços da autoestima e da sanidade de quem se recusa a fazer a política dos desafetos.

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Ariane Silva
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Written by Ariane Silva

jornalista, feminista e causadora de confusão.

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